O Desafio da Paternidade e Maternidade nos Dias de Hoje – Parte II

24 de março de 2013

Palestra proferida pela Dra Ana Paula I. Cury na Escola Waldorf Rudolf Steiner em 29.03.2012 em A Boa Terra

A família – o início de nossa jornada humana

“Amar e educar os filhos, não apenas criá-los, comporta uma enorme gama de ações. Ações que muitas vezes têm sido delegadas, terceirizadas com sérias consequências. A família sempre foi o lugar não apenas do ninho, do abrigo, mas, sobretudo o lugar primeiro da educação, ali onde os seres humanos são iniciados à sua própria humanidade e à humanidade dos seus semelhantes.

Essa passagem da condição animal à condição humana implica em uma atenção cotidiana, uma vigilância e escultura das personalidades, sem a qual a condição animal prevalece, com suas cargas instintivas agressivas e sua ignorância do que chamamos civilização. ”( Rosiska Darci)

Essa escultura sempre foi primordialmente uma arte feminina porque requer qualidades que são atributos arquetipicamente femininos, e aqueles que se dedicarem a esta arte deverão ter desenvolvidas ou em desenvolvimento tais virtudes, sejam eles homens ou mulheres, todos ocupados em trabalhar a “argila humana”.

Iniciar nossos filhos à sua própria humanidade, contudo, é algo que só podemos fazer se formos a um só tempo o barro a ser moldado e artesãos do que estamos potencialmente destinados a ser ou que sonhamos ser. O que caracteriza o ser humano é justamente o fato de que não foi criado perfeitamente pronto e acabado. A afirmação de sua dignidade está precisamente em se elevar acima de sua natureza inferior e a transformar a serviço de algo maior e mais nobre, a dimensão ideal, espiritual do ser. Em sua filosofia da Liberdade, diz Steiner: “Existe no homem a possibilidade de se transformar, assim como a semente da planta contém em si a possibilidade de evoluir para uma planta completa. A planta se desenvolverá em função da lei que lhe é inerente; o homem permanece em seu estado imperfeito, a menos que assuma a si mesmo como uma matéria a ser transformada por força própria. A natureza faz do homem um mero ser natural; a sociedade, um ser que age conforme leis; um ser livre somente ele pode fazer de si mesmo. A natureza abandona o homem em determinado estado de sua evolução; a sociedade o conduz alguns passos adiante; o último aperfeiçoamento somente ele pode dar a si próprio”.

O homem não recebe sua qualidade humana como dádiva, mas tem que forjá-la, tem que conquistá-la.  E esta conquista se dá ao longo de um caminho de auto desenvolvimento.

Auto desenvolvimento no passado e no presente

Em tempos antigos, na infância da humanidade, o homem foi guiado, a princípio, diretamente por seres espirituais, e mais tarde por líderes espirituais que estavam abertos à inspiração e direção de seres mais elevados. Estes que se converteram em guias de seus semelhantes, desenvolveram a capacidade para isso nos assim chamados locais de mistérios. Um longo e rigoroso aprendizado levava por fim à chamada iniciação – o coroamento de um processo que despertava gradual e progressivamente capacidades de percepção supra-sensível, permitindo-lhes conhecer as diretrizes a partir das quais se devia realizar o esplendor de uma época cultural.

Rudolf Steiner descreve todos os mistérios pré-cristãos como sendo mistérios da sabedoria. Todos os conteúdos destes mistérios estavam direcionados no sentido de proporcionar ao discípulo um acesso à sabedoria oculta da qual surgira toda a Criação. A antiga iniciação estava orientada para o passado – ela buscava uma volta à fonte da qual fluiu a sabedoria inerente a toda a natureza e obra divina. E assim, recebendo o que emanava dos deuses como sabedoria, estes líderes podiam ordenar toda a vida social e cultural impulsionando seus semelhantes conforme o que cabia realizar para cumprir a meta daquele estágio evolutivo.

Hoje, já não é tempo de se confiar e deixar-se guiar por uma autoridade externa. O ponto de partida para o ser humano é sua capacidade intelectual altamente desenvolvida. O pensar claro, autônomo, em que o eu vivencia a si mesmo. Ele pode, em liberdade, tomar nas mãos o próprio desenvolvimento, formar seu próprio mundo social e até transformar a natureza. Nesta época o ser humano é convocado para o empreendedorismo, para a tomada de iniciativas, para assumir responsabilidade pessoal. Para a atividade como artista (que de modo criativo, forma algo novo). Essas mencionadas características têm em comum a ação, o colocar em ação a vontade própria.

Desse ponto de vista, é compreensível que Rudolf Steiner tenha falado sobre os novos mistérios como mistérios da vontade. Os antigos mistérios da sabedoria entraram em decadência e perderam sua força inspiradora no decorrer da evolução. O que antes era ainda revelação viva morreu na tradição e no dogmatismo. Se antes todas as áreas da vida possuíam uma orientação espiritual com uma qualidade que reintegrava o homem à sua origem, à sua essência, com o início da época moderna e a ruptura da consciência que passa a ser orientada para o mundo sensorial exterior, a orientação espiritual se perdeu. A cultura já não é mais inspirada pelos centros de mistérios, onde se abrigava a antiga espiritualidade; ela recebe seu conteúdo daquilo que as pessoas, por suas próprias forças, desenvolvem em termos de ideias. Em certo sentido, os centros de pesquisa das universidades assumiram a direção que outrora era dada pelos antigos mistérios. Eles indicam com sua ciência – e com a continuação desta: a técnica – a direção da sociedade.

Sem uma nova orientação para o espiritual, esse desenvolvimento nos conduziu a um materialismo cada vez maior. “A combinação de ciência e máquinas ameaçará a civilização com três formas de destruição se não nos unirmos o suficiente e nos voltarmos para o supra-sensível.”disse SteinerEstas são as coisas que têm tido um efeito progressivamente intenso desde meados do século XV e estão agora roubando aos seres humanos sua própria humanidade. Se as pessoas levarem o pensamento mecanicista e a indústria ao que resta da vida, então seus espíritos tornar-se-ão mecanizados, suas almas dormentes e vegetabilizadas, e seus corpos animalizados.”

Ele considerou sua tarefa indicar caminhos para essa nova orientação rumo ao espiritual. Mas agora não mediante uma volta ao passado, e sim graças a uma vontade espiritual para o futuro.
Em toda parte onde respostas para perguntas desta época são procuradas com base na Antroposofia, essa vontade espiritual é despertada. Ali os novos mistérios se tornam atuais, e são mistérios da vontade.

As provas iniciáticas que pertencem a este caminho de aprendizado nesses mistérios não sucedem em templos secretos e distantes, e sim na vida diária, em todo contexto em que se age e onde tem lugar o relacionamento com outras pessoas: na família, no trabalho, no trânsito, na vida comercial, etc. Em todas essas situações de vida a coragem é exigida, e passos são dados em direção a uma iniciação da vontade.

Resta-nos agora indagar, como o despertar para a busca de um caminho interior no qual se procure cultivar a própria essência, a própria espiritualidade se relaciona com a tarefa de educar os filhos?