O ato e a potência

05 de agosto de 2014

Por Eugenio Mussak em Vida Simples – 01/11/2013

A importância de reconhecer as situações e as pessoas não apenas pelo que são, mas pelo que podem vir a ser.

Por muitos anos, depois que viemos do Sul, moramos em Higienópolis, um bairro residencial antigo e clássico de São Paulo, e por lá queríamos ficar. Estávamos acostumados à vizinhança, já conhecíamos as padarias, as pracinhas, as lojas de rua e agora procurávamos um apartamento para comprar. Aquela era o tipo de região em que só se compram apartamentos antigos que precisam ser reformados. Ok, tínhamos a consciência do fato e a disposição para enfrentar um tempo de obra, convivendo com sacos de areia, operários e estouros de orçamento.

Fomos então visitar um prédio dos anos 60, com um imenso jardim na frente e um toque art déco. Os espaços eram generosos e havia um certo ar de tradição e aristocracia no ar. Até que entramos no apartamento.

A primeira sensação foi de decepção e o primeiro impulso, o de ir embora. O imóvel estava fechado havia muito tempo, o cheiro era de mofo, as paredes e as janelas eram escuras e mal se via o piso. Sufocante era pouco, para explicar o sentimento. Foi quando um lapso de sabedoria me fez ponderar para minha mulher:

– Calma. Não viemos aqui para visitar o apartamento, e sim para conhecer suapotência.

– Hã? – foi o primeiro comentário.

A potência em questão não tinha nada a ver com o campo de estudo da física, e sim da filosofia. Eu não me referia à potência newtoniana, e sim à aristotélica. Sim, esse tema faz parte da filosofia de Aristóteles, aliás é um ponto crucial para entender o pensamento de um dos maiores filósofos da história ocidental, que viveu lá pelos idos do século 6 antes de Cristo, mas que continua incrivelmente atual em vários aspectos. Este, por exemplo.

Para Aristóteles, tudo deveria ser visto através do filtro de duas variáveis: o ato e a potência. Ato é estado atual, o presente. Potência é o que pode vir a ser, é o futuro encerrado na condição presente, no ato. Uma semente, por exemplo, não é só uma semente – é uma árvore em potência. A semente é o ato, e a árvore é a potência nela incluída e aprisionada.

Seguindo o raciocínio, o ato cumpre seu destino, ditado por sua potência e, assim, transforma-se em um novo ato, criando um maravilhoso movimento quase sem fim. Assim, a árvore, que já foi semente, agora é madeira empotência, que, por sua vez, será uma mesa em potência.

Ou seja, tudo o que é algo pode vir a ser outra coisa. Entretanto, essa potência tem suas próprias limitações, pois uma semente de carvalho não poderá vir a ser um pinheiro. Há um destino incluído na potência original.

E não é tudo – ainda há o movimento. Movimento, na visão do filósofo, é o fenômeno por meio do qual algo realiza o destino definido por sua potência. Esse movimento pode ser natural, como o fabuloso conjunto de fenômenos biológicos envolvidos na transformação da semente na árvore, que inclui o solo, os nutrientes, os micro-organismos e o sol. E pode ser artificial, quando é promovido pela vontade humana. E esta, sabemos, é tão variável quanto a fertilidade dos solos. Há a terra vermelha, úmida, arejada ou cheia de húmus. Assim também é a vontade das pessoas.

Reformar é ir além

Para resumir, se tivéssemos olhado para aquele apartamento e percebido só o que ele era, não o teríamos comprado e vivido felizes nele. Por sorte, conseguimos perceber o que ele poderia vir a ser, após a reforma.

Aliás, em inglês, reforma é makeover, mas, se você separar as palavras make e over, surge algo como fazer mais, ir além, superar a situação anterior. A língua inglesa nos oferece uma bela metáfora. Para reformar, transformar, realizar potenciais, é necessário superar, não estacionar.

É interessante notar como esse conceito da filosofia e da arquitetura pode ser aplicado a tudo o que fazemos. No mundo das empresas, por exemplo, o rh, responsável pela seleção e contratação dos funcionários, leva em consideração duas variáveis: o desempenho e o potencial. O desempenho é avaliado pelo currículo ou por um período de experiência. A pessoa é observada e seu trabalho é analisado. Desempenho vem a ser o trabalho transformado em resultado.

Só que o RH sabe que o desempenho ótimo só surge depois de algum tempo. Por isso, avalia os funcionários também a partir de seu potencial, que, por sua vez, está dividido em duas frentes: a capacidade de aprender, evoluir e melhorar, e a vontade de fazer isso. Capacidade sem vontade não se concretiza. Vontade sem capacidade não tem futuro. Análises malfeitas do potencial podem provocar desperdícios e até mesmo infelicidades.

Lembro-me de uma amiga que, no final de um casamento conturbado, dizia: “Eu devia ter percebido o óbvio, que nossa relação não tinha futuro”. Pois é, ela não percebeu porque o entusiasmo da paixão nos torna insensíveis à realidade. Se avaliarmos o então noivo, seu ato era bom, mas sua potência era um desastre.

A dialética da vida

No caso do casamento, será que não faltou diálogo? Pode ser que tenha faltado dialética. Para a filosofia, dialética é um método de diálogo cuja finalidade é a contraposição de ideias conflitantes, realizado de tal maneira que permite o surgimento de novas ideias, que contêm elementos das anteriores, mas que são inteiras em si mesmas. A palavra latina dialética significa algo como “caminho entre ideias”.

Outro conceito muito caro aos filósofos é o do devir, ou vir a ser, sobre o qual se interessaram mentes brilhantes desde Heráclito até Marx, com importantes pitacos dados por Kant, Hegel e Nietzsche, entre outros grandes do pensamento ocidental.

Respeitadas as idiossincrasias, o assunto versa sobre o tema proposto pelo primeiro deles, o grego Heráclito, que viveu bem antes de Aristóteles. Foi ele que disse que “tudo flui”, que “o único permanente é a impermanência” e que “não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”. E disse mais: que tudo o que vive habita os opostos, e que a evolução depende dos ciclos criados entre esses opostos. Eis a dialética em sua nascente.

Assim, analisar os fatos da vida como eles são é um sinal de lucidez, mas lançar os olhos sobre o que eles podem vir a ser é um sinal de sabedoria. Professores percebem o potencial de seus alunos. Profissionais de rh avaliam o potencial de candidatos. Mas nenhum deles se acomoda na posição de espectadores da dialética da vida. Buscam atuar para construir o futuro. Essa é a parte bonita desta história. Nas coisas humanas, a potência está aprisionada no ato, e só é libertada pelo movimento desencadeado pela vontade, usando uma ferramenta de que dispomos: a inteligência.

Em outras palavras, analisando algo no presente, você pode chegar a uma entre duas conclusões: você gosta ou não gosta do que vê. Sei que se trata de uma simplificação, mas esta é sempre nossa primeira análise.

Após a análise, vem a reação, que em geral é a seguinte: se eu gosto, quero, se não gosto, não quero. Primitivo demais. É preciso avaliar o devir. É necessário avaliar o potencial de transformação. Então chegaremos à conclusão tão óbvia quanto imperceptível, de que tudo vai mudar, e, nessa mudança, pode tanto melhorar quanto piorar. A depender do quê? Ora, a depender das atitudes do observador, claro. Sim, já se disse que o olhar modifica os fatos. Não só o olhar, claro, mas o que o acompanha, que são as ações, providências, recursos aplicados, trabalho, determinação, energia.

Mudamos, há pouco tempo, daquele apartamento de Higienópolis, e, às vezes, ainda sinto saudades dele, apesar de estar em outro melhor. Quando me ponho a examinar esse fato, percebo que a saudade é resultado não só dos bons momentos que lá passamos, mas do movimento que nele provocamos. Ele já existia, mas estava em estado vegetativo. Dependia de nós para voltar a viver. Sim, foi o movimento que liberou sua potência. E assim é a vida.